Série especial: vida de piloto internacional
“A aviação é um vício. Na primeira vez que voei, eu disse que era isso que queria fazer”, garante o bento-gonçalvense Celso Ferronato Junior, que há cerca de um ano vive em Dubai com a esposa. Piloto por acaso, atualmente trabalha em uma companhia aérea nos Emirados Árabes Unidos e sente-se realizado com a profissão e a vida no Oriente Médio.
Sua ligação com a aviação surgiu aos 16 anos, quando estudava enologia na antiga Escola Agrotécnica – hoje Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) – e percebeu que não queria seguir neste ramo. Na ocasião, um amigo da família, que era piloto, o questionou sobre suas aspirações profissionais e sugeriu a carreira. O que o convenceu foi o fato de que, ao alistar-se na Aeronáutica, seria dispensado do serviço militar. Como queria “fugir do quartel”, achou uma boa ideia. “Gostava muito de dirigir desde pequeno. Sempre fui ligado à fazenda, à área agrícola, dirigia trator, colheitadeira, carreta. Aprendi a dirigir carro com oito anos de idade”, lembra.
Ele iniciou o curso de piloto privado em Bento Gonçalves e aos 18 anos mudou-se para Porto Alegre para dar continuidade aos estudos, fazendo curso de piloto comercial e outras carteiras. Na capital gaúcha também iniciou a faculdade de Ciências Aeronáuticas, na PUC, graduando-se em 2002. Nesta época a aviação enfrentava um momento complicado em todo o mundo por conta das implicações do ataque às Torres Gêmeas, em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001 e ele ficou um ano sem atuar na área – foi até chefe de cozinha nesse período.
Em 2003, mudou-se para o Mato Grosso, onde durante dois anos pilotou o bimotor de um deputado. Com isso, completou as horas de voo necessárias para entrar na aviação comercial. No ano de 2005, começou a trabalhar na Gol Linhas Aéreas, atuando durante seis anos como copiloto dos Boeing 737 e 767. Depois, foi promovido para comandante na mesma companhia, onde permaneceu até 2014. Naquele ano, trocou a aviação comercial pela executiva, na qual trabalhou até o início de 2015 – por conta da crise econômica, o proprietário precisou vender o avião e ele ficou desempregado. Durante o restante do ano, preparou-se para voltar à aviação comercial, mas desta vez queria alçar voos ainda mais altos e trabalhar fora do país. Participou de processos seletivos em empresas estrangeiras e foi aprovado por uma companhia do Oriente Médio. Em maio de 2016, mudou-se para Dubai e iniciou o trabalho em uma empresa dos Emirados Árabes Unidos que opera para quase 100 destinos.
Rotina
A empresa adota o regime de escala e voos “bate e volta”. “Não tenho rotina de acordar às 8h, ir trabalhar às 9h e estar de volta às 17h. Temos horários variados”, explica. No dia 25 é divulgado o cronograma para o mês subsequente. Geralmente ele trabalha de três a quatro dias seguidos, em diferentes turnos, e depois folga dois a três dias, totalizando entre 11 e 12 descansos mensais. Por conta do modelo adotado pela companhia, dificilmente pernoita em outra cidade, como ocorre com a maioria dos pilotos de outras empresas. “Tenho a rotina de um trabalhador comum, mas sem horário fixo. Às vezes saio de manhã e volto de tarde; saio de tarde e volto de madrugada; ou saio de madrugada e volto na tarde do outro dia”, exemplifica.
Em um dia normal de trabalho, ao chegar ao aeroporto, dirige-se até o despacho operacional da empresa onde se reúne com a tripulação e analisa a papelada do voo. No documento, além da rota, constam os procedimentos especiais a serem adotados conforme o destino. Ele explica que a empresa voa para diferentes espaços aéreos e cada um tem suas peculiaridades – operações no gelo, regiões em estado de guerra e países sob intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU). A aeronave é preparada cerca de 45 minutos antes do início do embarque. Ao pousar no destino, o procedimento se repete para iniciar o trajeto da volta. Não existe um trecho que ele realize regularmente. Os mais usuais são para cidades na Ásia, Leste Europeu e Costa Oeste da África, tais como Deli e Bombaim (Índia), Bangkok (Tailândia), Cabul (Afeganistão), Kiev (Ucrânia), Bratislava (Eslováquia), Meca, Jidá e Riade (Arábia Saudita), Bagdá (Iraque) e Teerã (Irã).
Choque de culturas
Logo que chegou ao Oriente Médio, Celso não estava muito familiarizado com a cultura árabe e conta que, em um voo fretado para Meca, durante o mês do Ramadã, estranhou ao ler a instrução para que, em determinado ponto da rota, anunciasse aos passageiros que o horário da oração se aproximava. Além disso, ele deveria dizer em qual direção a cidade sagrada se encontrava. Após cumprir a norma, questionou o copiloto, que lhe sugeriu abrir a porta da cabine para verificar. “Todos estavam ajoelhados no corredor do avião, virados para o lado esquerdo da aeronave e fazendo suas orações. Por ser a primeira vez, foi uma situação inusitada, mas depois virou rotina”, lembra.
Voo mais longo
O voo mais longo de sua carreira durou 19 horas. Foi um translado de Istambul, na Turquia, até Belo Horizonte, dividido em duas etapas com escala na Ilha do Sal – próximo à entrada da África – para reabastecer a aeronave. “Foi um voo inesquecível. Não estava mais trabalhando na Gol, porém ainda mantinha as carteiras do avião. Era um avião de translado que a companhia tinha emprestado para uma empresa na Turquia. Não tinha quem buscasse o avião e terceirizaram o serviço para uma empresa onde eu mantinha currículo”, conta.
Vida em Dubai
“A vida em Dubai é muito boa, é muito simples. A maioria das pessoas acha que é um lugar difícil de se adaptar. Muito pelo contrário, é uma cidade cosmopolita, feita para que a pessoa que vem de fora se adapte o mais fácil e rápido possível”, resume, dizendo que somente 10% da população é árabe e o restante escolheu a cidade para trabalhar e ganhar a vida. “A cidade não tem violência, não tem assalto, não tem roubo, porque a lei funciona. Aqui no Brasil a gente tem a certeza da impunidade; em Dubai, eles têm a certeza da punição. Se andar fora da linha, você vai ser punido”, comenta.
Ele e a esposa não tiveram dificuldades de adaptação, especialmente por conta da grande comunidade de brasileiros vivendo na região. Segundo ele, a cidade oferece variadas opções de lazer e entretenimento e os serviços públicos funcionam, sem necessidade de dar o famoso “jeitinho brasileiro”. “Já estamos completamente adaptados. É difícil voltar para cá, a gente acaba se desacostumando com o estado de alerta em que precisa estar por causa da violência. A gente acaba se tornando descuidado, desleixado, e pode pagar o preço quando está no Brasil. Em Dubai, se você esquecer a carteira no banco da praça hoje de tarde, amanhã vai estar lá, ou alguém entregou a um policial”, exemplifica.
Nas horas vagas, Ferronato gosta de ir à praia e a clubes com piscina, ou passa o dia em barcos de amigos quando aproveita para pescar, mergulhar e praticar wakeboard. A família dele e da esposa, assim como os amigos que cultiva desde a infância, residem em Bento Gonçalves. Pelo menos uma vez ao ano ele vem ao Brasil para revê-los. Este ano será atípico, pois além da visita em março, voltará em outubro para acompanhar o nascimento dos sobrinhos gêmeos, já que será padrinho de um dos bebês.
Futuro
Os planos para o futuro incluem pelo menos mais uns 15 anos de trabalho até conquistar a independência financeira. “Hoje a aviação comercial fora do Brasil está bem remunerada, com um salário até três vezes maior”, compara. Como tem passaporte europeu, após encerrar a carreira ele pretende fixar residência em alguma cidade do interior da Europa e curtir a vida viajando e explorando novos lugares. “Faço aquilo que eu gosto, aquilo que eu amo e que me deixa muito feliz e realizado”, conclui.