Série especial: vida de quem ama cuidar da saúde e do bem-estar dos outros

Já pensou o que seria da sua vida se todas as suas aspirações iniciais tivessem se concretizado? Às vezes são as mudanças inesperadas de rota que trazem grandes alegrias. Ana Maria Turmina Fontanella, 53 anos, queria ser arquiteta. Com 16 anos, partiu de Nova Araçá para Bento Gonçalves para concluir o então segundo grau – hoje Ensino Médio. Estudando à noite e morando em uma pensão, precisava de um empego para ajudar no custeio das despesas. Por intermédio de uma amiga da família, conseguiu uma vaga como mensageira no laboratório do Hospital Tacchini. Não era, nem de longe, o que ela havia sonhado, mas no dia a dia desenvolveu o amor à profissão e em maio completa 37 anos de casa – é a enfermeira mais  antiga do quadro funcional e embora já aposentada, segue na ativa. “Não me arrependo, gosto muito do que faço”, garante. Foi ali que conheceu o marido, também enfermeiro, e construiu laços afetivos. “O hospital para mim é uma família. As pessoas que eu conheço na cidade são do hospital, os meus melhores amigos que eu fiz foi aqui dentro”, resume.

O começo não foi nada fácil. “Na primeira semana, eu disse que não ficaria aqui. O cheiro me incomodava muito, eu não conseguia olhar para os doentes. Foi uma opção, porque eu precisava trabalhar se quisesse estudar”, conta. Logo nos primeiros dias, ela foi reclamar das dificuldades com a mãe. “Eu não lembro o que ela falou, mas me convenceu a ficar”, recorda. Ao concluir os estudos, decidiu cursar Licenciatura em Enfermagem. O hospital incentiva os funcionários a estudar. Como as aulas eram no período da tarde e em Caxias do Sul, ela conseguiu acertar com os superiores um ajuste de horário: trabalharia das 6h às 12h de segunda a sexta-feira e compensaria o restante aos finais de semana. Entretanto, haveria uma condição: ela deveria permanecer no emprego por pelo menos dois anos após a formatura. Ana aceitou. Mais tardem também concluiu uma pós-graduação em gerenciamento hospitalar.

Hoje, ela é enfermeira líder do setor de Laboratório de Análises Clínicas, um trabalho mais “light”, menos braçal e mais intelectual, segundo ela. Além das funções de gerenciamento, ela se prontifica a ajudar os colegas em questões mais delicadas como punções de pacientes das UTIs neonatal e pediátrica.

Durante boa parte da vida, Ana conciliou dois empregos para aumentar a renda. No período noturno, trabalhou nos hospitais de Garibaldi e Carlos Barbosa e também no Pronto Atendimento 24 horas em Bento Gonçalves. Teve outros convites de trabalho – até passou em concursos públicos –, mas, repetindo os ensinamentos dos pais de que era importante preservar o emprego, não saiu do Tacchini. Com a aposentadoria, deixou o segundo emprego, embora ainda assine como responsável técnica de uma casa de repouso

Na época em que entrou no Tacchini, a comercialização dos planos de saúde Tacchimed estava apenas no começo e ela acompanhou grande parte da evolução da empresa. “O hospital era minúsculo, não tinha a parte nova. Nesta parte só tinha a UTI de adultos, que era menor e o posto 3, que tinha seis leitos, um setor diferenciado para os que estavam comprandoo plano de saúde”, explica.

Ao longo dos anos, a enfermeira precisou se adaptar também às mudanças pelas quais o serviço de saúde passou, seja pela atualização de normas a serem seguidas ou pelo processo de informatização. A transição para as novas tecnologias teve uma resistência inicial entre ela e os colegas – passar a usar o computador para quem era habituado com máquinas de escrever é um grande choque. “Sou da época em que era preciso afiar as agulhas para fazer injeção e poder tirar sangue”, recorda.

Ana com os filhos, Augusto e Andréia, e o marido, Vilson, que ela conheceu no hospital, e com quem é casada há 33 anos

“Esqueço da vida lá fora”

O trabalho absorve grande parte do dia da enfermeira, que acaba se envolvendo com as histórias que os pacientes contam. “Quando eu entro no hospital, esqueço da minha vida lá fora. Meu marido e meus filhos às vezes me chamam atenção: ‘ligamos e você não atendeu’. Eu nem vejo. Eles sabem que eu estou dentro do hospital”, diz. Quando não está trabalhando, Ana se dedica aos seus hobbies: estuda francês, faz patchwork e participa de confraria de vinhos.

A parte mais difícil da profissão é lidar com a morte, especialmente a de crianças, e com a dor,  como a dos pacientes do setor de Oncologia. “A dor me deixa muito mal. Quem vê de fora acha que somos frios, mas a gente sente a doença como se fosse em nós mesmos. A gente se coloca no lugar do doente, mas é trabalhada para nesse momento ter um perfil de profissional. A gente chora escondido muitas vezes. Faz parte, é um ser humano que está aí. Não é aquela coisa fria, de ‘só mais um’. Não é só mais um, é um ser humano”, pontua.

Casos de falecimento repentino, como ocorre em acidentes de trânsito, também não são fáceis de lidar. “Nenhum de nós está preparado para o pior, para a morte, para a doença. Eu vi muitos jovens vítimas de acidente e as famílias ficam arrasadas. Nós damos apoio, mas não temos muito o que fazer. Gostaríamos de fazer algo de diferente para as pessoas saírem felizes, mas não dá, porque propriamente nós não compreendemos. A morte é um ponto de interrogação bem grande”, observa.

Entre os momentos delicados nestas mais de três décadas de enfermagem ela cita o falecimento dos filhos de duas colegas – um deles em função de um acidente, cuja morte foi descoberta quando a mãe da vítima, curiosa, foi saber quem era o paciente que recém havia dado entrada no hospital. Durante um tempo, Ana também participou do grupo de captação de órgãos, mas pediu para ser remanejada de função após um episódio que a marcou bastante. “Um dia fui captar uma córnea e me deu um ‘negócio’, era um rapaz jovem. Não sei, acho que foi mais por pensar ‘olha o que a gente vira, nada’. A pessoa é mantida viva até tirar os órgãos, depois, é só apertar um botãozinho. Dá um negócio ruim”, explica.

Ana costuma dizer que conviver com o ambiente hospitalar por pelo menos um mês é uma grande lição de vida, válida, sobretudo, para aquelas pessoas mais gananciosas e exibidas. “A gente vê muitas pessoas ‘de posse’ que acham que não vão nunca morrer, mas é natural. O nosso corpo tem um período, como uma planta. Não tem saída. É todo mundo igual. Ninguém é dono de nada. A gente tem que semear o bem que a gente fez, viver em harmonia, ser mais humano”, conclui.

 

Esta é a 20ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.

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