“Todos os dias, sinto que estou me arrumando para uma guerra”

Dados da secretaria estadual de saúde apontam que, desde o início da pandemia, o Rio Grande do Sul já registrou quase 10.000 profissionais de saúde infectados pela COVID-19. Em Caxias do Sul, maior cidade da Serra Gaúcha, os casos entre esses trabalhadores contabilizaram mais de 500 até esta semana. Entre as vítimas está a fisioterapeuta Camila Fiorio, funcionária do Hospital Pompéia. Com diagnóstico positivo da COVID-19, a profissional de 37 anos internou na UTI do hospital no último sábado, 15/08, sem registro de doenças pré-existentes. Ela teve embolia pulmonar e sua morte foi registrada na manhã de domingo, 16/08. 

Nas redes sociais, amigos, familiares e colegas de trabalho lamentaram a perda. O Hospital Pompéia declarou que a profissional será lembrada “pela dedicação e empenho com que exerceu suas atividades, ao longo destes doze anos, na gestão do serviço de fisioterapia”. 

Entretanto, mais que a exposição constante ao vírus, os profissionais da saúde estão enfrentando situações que têm tornado a rotina desafiadora e, muitas vezes, exaustiva. Para a enfermeira do Centro Obstétrico do Hospital Tacchini, Gabriela Valiati, desde o início da pandemia os momentos de incerteza e insegurança acompanham a rotina profissional. “Cada dia é um dia diferente no qual há novos estudos, protocolos, novos processos e procedimentos que visam um melhor atendimento seguro e de qualidade. Mas no meu trabalho diário, a minha maior dificuldade é precisar ficar mais distante durante a assistência à gestante, à puérpera e ao bebê, pois prezo muito pelo contato físico. Gosto de estar perto e conversar, olho no olho”, revela. 

A enfermeira do Pronto-socorro (PS) do Tacchini, Carene Carvalho da Silva Silvestre, descreve a pandemia como um cenário de guerra. “Todos os dias, quanto estou me arrumando para ir trabalhar, sinto que estou me arrumando para uma guerra. E eu não conheço contra quem estou lutando. Tudo que sei é que tenho que lutar e vencer todos os dias, porque minha filha e meu marido me esperam em casa”, descreve a profissional. 

Carene é natural do Piauí e trabalha há 5 anos no Tacchini. No começo deste ano, foi promovida ao cargo de líder de enfermagem da equipe do PS. “As mudanças com a pandemia foram gritantes. Antes, quando chegasse um paciente grave, corríamos direto para o atender. Hoje, precisamos nos paramentar primeiro, para depois atender”, relata. Durante toda a jornada de trabalho – que chega a 12 horas nos finais de semana – a profissional utiliza um protetor facial e uma máscara N95 por baixo, além de avental e touca. “Quando faço jornada de seis horas, ao final, parece que fiz 12. Não tiramos a máscara para nada, somente quando vamos tomar água e comer alguma coisa. Mas até nesses momentos existe todo um processo. Muitas vezes ficam marcas no rosto devido à máscara. A gente se sente muito cansado”, conta. 


Enfermeira Carene Carvalho da Silva Silvestre. Foto: arquivo pessoal
 

Mesmo com todo o cuidado, o risco de contaminação ainda é muito grande, principalmente na hora de retirar os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Por conta disso, Carene explica que a união entre os profissionais tem sido fundamental. “Criamos uma rotina no PS na qual nossos colegas são os nossos olhos. Como se fossem espelhos, para sabermos se está tudo certo. Porque como a mudança foi muito grande, às vezes podemos esquecer de colocar ou retirar alguma coisa. Cada um cuida de si e todos cuidam de todos”, afirma. 

Até o momento, Carene afirma que apenas 3 colegas de trabalho foram infectados pelo Coronavírus, mas todos acreditam terem pego fora do hospital. “Nosso setor é portas abertas. Recebemos todos os pacientes que procuram atendimento. Considerando isso e que somos em 25 pessoas, o número é baixo”, avalia. Em Bento Gonçalves, de acordo com dados do Estado, 359 profissionais de saúde já se contaminaram desde o início da pandemia. 

A enfermeira Gabriela Valiati entrou para essa estatística. Apesar dos sintomas leves e quase imperceptíveis, ela afirma que o período foi preocupante. “Mesmo assintomática, são dias angustiantes, pois não sabemos como nosso corpo irá responder ao vírus nos dias seguintes”, relata. Essa, para Gabriela, foi uma das situações mais desafiadoras até o momento. “Ter um teste positivo de COVID, ver colegas afastados com sintomas, seguir o isolamento e, principalmente, ficar longe da família. Essa é uma das partes mais difíceis”, desabafa.


Enfermeira Gabriela Valiati. Foto: arquivo pessoal
 

O cuidado e a preocupação continuam em casa

Segundo a enfermeira Carene, os cuidados relativos à pandemia são mantidos 24h, o que ocasionou uma mudança brusca também na sua rotina pessoal. “Quando começou a pandemia, iniciamos uma ‘força-tarefa’ na nossa casa. Tenho uma filha de 1 ano, então decidimos adotar várias medidas de segurança. Não recebemos mais visitas e também não visitamos ninguém. A minha filha apenas tem contato comigo depois que faço todo processo de tirar a roupa e tomar banho. Ao supermercado estamos indo apenas uma vez ao mês e a parte das frutas nós conseguimos uma entrega em casa”, relata Carene. 


Carene e o marido, Fábio Silvestre, mantêm uma rotina rígida de cuidados para se protegerem e protegerem a filha, Júlia, de 1 ano de idade. Foto: arquivo pessoal

Acostumada com o contato próximo de familiares e amigos, a enfermeira recorda que tinha o hábito de tomar chimarrão com o marido e os sogros – que residem ao lado de sua casa – todos os dias. “Nós não temos televisão em casa e esse sempre foi um passatempo. Então a pandemia impactou muito”, lamenta. “Somos pessoas de contato, que gostam de ter gente por perto. Como isso mudou radicalmente, criamos grupos de amigos pela internet, para nos encontrarmos e falarmos sobre assuntos diversos”, conta Carene. A ideia tem rendido bons resultados. A cada encontro, são debatidos livros, filmes ou situações do dia a dia, durante cerca de 4 horas. “Um dia fizeram uma pauta comigo, para saber sobre meus sentimentos como enfermeira. Em outro, meu marido falou sobre o motivo de ser vegetariano. Isso tem ajudado muito a minimizar os impactos da distância”, afirma. 

“Quando olho ao redor, tudo parece à toa"

Carene conta que, toda vez que volta para a casa, sente que venceu a guerra. Mas o comportamento das pessoas fora do hospital tem sido motivo constante de preocupação. “Eu tenho mais medo de pegar o vírus fora do que dentro do hospital. Quando saio do trabalho, no caminho para casa, eu vejo aglomerações de pessoas, sem máscaras, e isso me dói tanto. Eu fico pensando: eu faço tanto, eu mudei tanto e a gente sofre tanto na jornada de trabalho. E aí quando olha ao redor, tudo parece ser à toa. Diversas vezes eu choro dentro do meu carro. Eu queria poder filmar minhas 12 horas de plantão aos finais de semana e mostrar que essa doença realmente existe”, desabafa a profissional. 

Para Carene, a principal preocupação é contaminar as pessoas ao seu redor e as complicações virem a ser fatais. “A pior sensação é precisar entubar um paciente e saber que ele tem todas as chances de não voltar para casa. Ter que conversar com a família e dar essa notícia machuca muito. É como se estivéssemos perdendo uma vida para algo que a gente não conhece. Porque não há uma receita de bolo”, lamenta. Outro receio, segundo a profissional, é de um colapso no sistema de saúde. “Em um dia podemos receber dois pacientes com a COVID e, em outros, 30. Temos que estar preparados para as duas situações, mas até hoje tenho medo de, um dia, ter que escolher quem salvar”, declara. 


Foto: arquivo pessoal
 

Apesar dos receios, Carene afirma que essa pandemia proporcionará aprendizados valiosos tanto na questão profissional quanto pessoal. “Eu acho que nós vamos ter um sentimento maior de gratidão. Eu agradeço todos os dias, quando saio do plantão, que vou poder chegar em casa e ver minha filha sorrindo, ver o meu marido. É algo sem explicação”, conclui. 

Para a enfermeira Gabriela Valiati, a pandemia fará as pessoas refletirem para que se tornem seres humanos melhores. “Acredito que tudo na vida tem um propósito. Nada é por acaso. Nesse momento precisamos acreditar que podemos crescer com as adversidades e aprender que nada está no nosso controle. Precisamos nos modificar positivamente enquanto seres humanos, ser pessoas melhores, pensar no coletivo e nos ajudar”, finaliza.