Três sonhos, três destinos

Cômodos separados por cortinas improvisadas, cenário de miséria e uma história marcada por luta e dificuldade são comuns a muitas famílias que sobrevivem em uma das regiões mais pobres da cidade, o bairro Municipal. Na terceira reportagem da série “Uma Bento Gonçalves que poucos conhecem”, o SERRANOSSA conta a história de três dessas famílias, mostrando dramas e angústias e a rede de solidariedade que garante a elas o mínimo de dignidade. Elas fazem parte do rol de beneficiados de um projeto social comandado pelo Centro Espírita Nossa Casa e mantido, no bairro, pelo voluntário José da Silva, o Zé Paraná, cuja trajetória você conheceu na última edição.

Desistir jamais

Samara tem 39 anos, mas traz no semblante o cansaço e as marcas de uma vida difícil. Mãe de cinco filhos, com idades entre cinco e 18 anos, ela encontrou uma forma de conciliar a necessidade de supervisionar as crianças em tempo integral com a de trabalhar para conseguir pagar as contas básicas da família, entre as quais o aluguel de R$ 250. Na casa de dois cômodos, ela cuida de três filhos de vizinhos, um bebê e duas crianças de cinco e oito anos, função pela qual recebe R$ 320 por mês. “Corta o coração quando eles dizem estar com fome, pedindo um lanche, uma bolacha, e não tenho o que dar. Mas eu explico e eles entendem”, emociona-se. Samara recebe um rancho com produtos não perecíveis, como arroz e feijão, a cada 15 dias, entregue por Zé Paraná, e diz contar com a ajuda de vizinhos. “É sempre melhor depender de estranhos do que da própria família”, afirma, visivelmente ressentida.Mas a história de Samara nem sempre foi assim. Natural de Bento Gonçalves – uma situação pouco vista em áreas de periferias, geralmente formadas por migrantes – ela se mudou para Rio Bonito, no Paraná, com o marido. Lá, precisou conciliar a miséria com a desestruturação familiar. “Sofri muito, passei fome, dormi na rua e apanhei do meu marido para evitar que ele atacasse as crianças”, conta, com o olhar cabisbaixo. Ante ao desalento, ela voltou a Bento no final do ano passado para tentar retomar a vida.A pouca escolaridade e a quantidade de filhos nunca foram empecilhos para que Samara trabalhasse. Mesmo sem ter concluído o Ensino Fundamental – Samara cursou até a 5ª série –, ela enviou currículo para várias empresas e conseguiu uma vaga em um frigorífico em Garibaldi. “As pessoas falam muito mal desse tipo de serviço, dizem que é sofrido, mas eu adorava. Daria tudo para voltar”, relata, referindo-se à demissão sofrida em maio deste ano, depois que precisou ficar duas semanas sem cumprir expediente. Na época, o filho mais velho dela, então com 20 anos, que morava no Paraná, foi agredido por um grupo de rapazes. Samara diz não saber ao certo o motivo, mas fala em vingança. O rapaz permaneceu 18 dias internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), mas não resistiu aos ferimentos causados pela surra. Sem hesitar, assim que soube, ela voltou ao Paraná para ficar próxima dele, decisão que lhe custou o emprego.A cuidadora demonstra grande força de vontade e faz planos já para o início do próximo ano: quer voltar a trabalhar. “Aceito qualquer coisa”, garante. Assim, pretende conseguir uma remuneração melhor para sustentar os filhos, que ficarão sob cuidados dos mais velhos enquanto ela estiver fora, e ajudar nas despesas dos pais. Isso porque a mãe dela, de 55 anos, que vive com o marido no mesmo bairro, sofre com sequelas de um acidente de trânsito.

“Não encontrei qualidade de vida em Bento”

Silvana e o marido são jovens. Ela tem 21 anos; ele, 19. A preparação das poucas peças que compõem o enxoval para a filha, cujo nascimento está previsto para a metade de novembro, traz um pouco de alegria para o casal que, apesar da pouca idade, tem uma história marcada por dificuldades que quase se transformaram em tragédia.Há um ano, a residência em que eles moravam com o filho de quatro anos em Fontoura Xavier foi consumida por um incêndio. Eles perderam tudo – inclusive documentos – e por muito pouco a criança não morreu. “Foi um milagre. Ele estava no porão brincando e tudo veio abaixo”, relembra. Sem ter para onde ir, eles moraram com a sogra por alguns meses e decidiram migrar a Bento Gonçalves em busca de qualidade de vida e de ajuda. “Lá [em Fontoura Xavier] ninguém ajuda ninguém. Não há solidariedade”, lamenta Silvana.Apesar da perda de todos os documentos, o marido e o cunhado de 20 anos, que reside com o casal, conseguiram empregos em uma indústria que fabrica blocos de concreto. É com o salário dos dois que eles conseguem pagar o aluguel de R$ 250 e as contas básicas da moradia. Silvana trabalhava como babá, mas precisou largar o emprego no final da gestação.Ela conta que não encontrou a tão alardeada qualidade de vida de Bento Gonçalves, mas comemora o fato de haver uma grande oferta de emprego na região. “O custo de vida é semelhante, mas a vantagem é que em Fontoura Xavier tínhamos um lugar para plantar um mínimo de frutas, verduras e legumes para sobreviver. Aqui não há espaço para um pé de alface sequer”, detalha.

Problemas de saúde e burocracia

Maria Francisca não tem vergonha de sua condição. Aos 52 anos de idade, ela não descuida da limpeza da casa humilde, de apenas dois cômodos separados por uma cortina. “Eu queria deixar limpo, mas minha saúde me permite apenas tirar o pó”, garante, apesar da organização facilmente percebida na moradia.  Há oito anos, Maria sofre com dores fortes no pulso, na cabeça e na coluna, “problemas separados”, como ela explica. “Procurei várias vezes atendimento depois que o osso do meu pulso ‘saltou’ e o médico disse que preciso imobilizar o braço direito, como eu faço?”, questiona. Os problemas na coluna e as dores de cabeça, das quais sofre após uma queda, são agravadas ainda por um quadro de diabetes. “Quando saio na rua, as pessoas riem porque eu só uso chinelos, mas não posso colocar calçados fechados porque fazem feridas que não cicatrizam”, desabafa. Apesar dos problemas de saúde – segundo ela,  provenientes dos 28 anos nas lavouras de fumo –,  não deixou de trabalhar. “Ainda tiro o pó em umas casas, mas isso nem é serviço”, minimiza, referindo-se às faxinas que rendem cerca de R$ 100 por semana.  Maria mudou-se para uma casa construída pelo genro em Bento Gonçalves há três anos, vinda de Barros Cassal. Ela conta que foi o atendimento na área da saúde que a atraiu ao município. “Lá [em Barros Cassal] eu não conseguia remédios, não existe preocupação com essa área. Aqui, menos de dois dias depois de chegar, consegui medicamento e acompanhamento médico”, comemora.O principal dilema de Maria Francisca é a aposentadoria. “Trabalhei durante quase 40 anos na roça, mas só começamos a preencher o bloco depois de 18 anos trabalhados”, conta, referindo-se ao Talão do Produtor, que substitui a obrigatoriedade de carteira de trabalho assinada para fins de aposentadoria. “Como não tenho tempo suficiente de trabalho comprovado, vou ter que esperar até os 60 anos para me aposentar”, lamenta. Questionada se havia pedido informações sobre benefícios como o auxílio-doença, ela se mostra insegura. “Eu não entendo nada de nada, como vou atrás da papelada? Não sei nem por onde começar”, argumenta.Enquanto não consegue alento, Maria Francisca segue “quebrando galho”, como ela mesma define. “Bem não está, mas tem que estar”, conta a ex-agricultora, mãe de três filhos e avó de três crianças.

Ilegalidade

Apesar da miséria que assola a região e de grande parte das casas estar situada em áreas de risco ou irregulares, a negociação imobiliária é ativa. No início de novembro, Samara, uma das personagens desta reportagem, precisará deixar a casa improvisada onde mora de aluguel. O “proprietário” da moradia solicitou que ela se retirasse, informando que havia vendido a casa. Segundo Samara, ele teria recebido R$ 6 mil pela venda. Ela deve fazer a  mudança no próximo final de semana para um porão nas proximidades e comemora a redução de R$ 250 para R$ 230 no custo da locação.

Como ajudar

As famílias cujas histórias foram contadas nesta reportagem recebem ajuda do Centro Espírita Nossa Casa. Se você quiser ajudá-las, pode doar alimentos não perecíveis, especialmente azeite, leite e açúcar, bem como móveis,  roupas e calçados. As doações menores podem ser entregues no Brechó Nossa Casa (rua Marques de Souza, 775, em frente ao Cemitério Municipal), de segunda a sexta-feira, das 14h às 18h, ou na sede do Nossa Casa (rua Salgado Filho, 907, bairro São Bento), às terças e sextas-feiras, a partir das 19h. Os voluntários fazem coleta de doações de maior porte, como móveis. O agendamento pode ser feito através do e-mail nossacasa907@gmail.com.

 

Reportagem: Greice Scotton

 

É proibida a reprodução, total ou parcial, do texto e de todo o conteúdo sem autorização expressa do Grupo SERRANOSSA.

Siga o SERRANOSSA!

Twitter: @SERRANOSSA

Facebook: Grupo SERRANOSSA

O SERRANOSSA não se responsabiliza pelas opiniões expressadas nos comentários publicados no portal.