Um doador de órgãos pode ajudar 70 pessoas

Apesar dos esforços para conscientização sobre a importância da doação de órgãos, o maior empecilho continua sendo, ainda, a recusa dos familiares. Segundo dados da secretaria estadual de Saúde, no ano de 2015, foi registrada uma média de 41,2% de negativas por parte da família em realizar o gesto. O motivo? Desconhecimento do processo ou da vontade da pessoa. “Um doador saudável pode ajudar a mudar a vida de até 70 pessoas”, relata a enfermeira Zeni Lazzarini, coordenadora da Comissão Intra-hospitalar de Doação de órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT), do Hospital Tacchini.

Doar é mais que um gesto de solidariedade: é um gesto de amor, compaixão com o próximo. É uma forma de transformar a dor e o sofrimento da perda do familiar em uma ação altruísta. Atualmente, somente no Estado, existem quase 1.200 pessoas na fila de espera por um órgão, seja coração, córnea, fígado, rim, pâncreas ou pulmão. Muitos dependem de máquinas para sobreviver e da boa estrutura do sistema público de saúde, além de conviver dia a dia com a expectativa de uma nova oportunidade. Outros, perdem a vida antes de conseguir realizar o procedimento.

A doação de órgão somente pode ocorrer após a morte cerebral do paciente e a desinformação ainda é o principal problema enfrentado para realização do ato. “As pessoas têm ainda muitas dúvidas quanto ao assunto. Quando elas são informadas que o familiar teve morte encefálica, mas ainda respira com ajuda de aparelhos e o coração está batendo, as pessoas acham que ele está vivo. Porém, o paciente já não tem mais chances de voltar a viver. Nesse momento, a família se a pessoa gostaria de fazer a doação. Por isso, destacamos a importância de falar sobre o assunto, informar da opção”, reitera a enfermeira da radioterapia e coordenadora adjunta do CIHDOTT, Sônia Maria Salvadori Gracia.

Ela conta que muitos familiares confundem a morte cerebral com o coma. “Na segunda situação, a pessoa ainda tem circulação sanguínea no cérebro, já na morte encefálica não. Ela representa a morte da pessoa, uma lesão irreversível”, explica.

Diagnóstico

O processo para diagnóstico de morte cerebral segue protocolo de nível estadual e é realizado em pelo menos três etapas. Primeiro são feitos dois exames clínicos, acompanhados por médicos neurologistas e um clínico intensivista, e um exame de imagem, que pode ser a angiotomografia ou arteriografia cerebral, que permite a perfeita visualização das veias e artérias do cérebro. “Da primeira etapa para a segunda, é necessário aguardar, no mínimo, seis horas. Em seguida, poderá ser feito o exame de imagem. Esse processo leva em média 10 horas para detectar a morte encefálica do paciente e confirmar o seu óbito. Caso haja alguma dúvida, o processo todo é repetido”, explica Zeni. “Temos que ter 100% de certeza que a pessoa morreu. Nosso objetivo é salvar o paciente que está em atendimento. Salvar a vida dele, para, somente após todas as tentativas se esgotarem, cogitar a possibilidade de doação de órgãos”, complementa Sônia.

Doações e transplantes

Na cidade, através do Hospital Tacchini, é realizado apenas o transplante de córneas. Entretanto, na instituição também ocorre a captação de todos os demais órgãos e ossos longos – exceto medula óssea e pele -, conforme as integrantes do CIHDOTT. “Hoje contamos com um quadro de seis enfermeiras capacitadas para fazer a retirada das córneas. No caso de outros órgãos, equipes especializadas do Estado comparecem até o hospital para fazer a captação”, explica Zeni.  

Cada órgão tem seu tempo para ser transplantado, por isso, a necessidade de um trabalho rápido e orquestrado entre as equipes do Estado. Exemplo disso é o coração, que deve ser implantado em, no máximo, até quatro horas.

Nos anos de 2014 e 2015, foram captadas mais de 200 córneas, somente no Tacchini. Após mudança na legislação, no ano passado, o número de doações de córneas foi menor, pois a idade limite passou a ser de 70 anos. “Após a captação, o órgão é encaminhada ao banco do Hospital Geral, em Caxias do Sul. Ele pode ser transplantado em até 14 dias”, detalha a coordenadora.

O paciente que irá receber o órgão é selecionado e avaliado pela Central de Transplantes do Estado, que analisa o caso e a compatibilidade entre as pessoas. Inicialmente, a prioridade é para um paciente gaúcho – posteriormente, caso não haja ninguém compatível, busca-se um receptor no restante do país. O número de transplantes de córneas também foi significativo nos últimos dois anos: ao todo, foram realizadas 23 operações em casa período.

Em 2014 e em 2015, foram contabilizados, ainda, dois casos em cada ano de doação de órgãos múltiplos. O número é o mesmo já registrado em 2016, fato esse comemorado pela Comissão, que presencia a luta diária de pacientes que aguardar um órgão na fila de espera. “A captação pode levar algumas horas, dependendo do órgão a ser retirado e de como está a agenda de trabalhos das equipes especializadas, mas a certeza é que ele poderá dar uma nova chance a outra pessoa”, destaca Zeni.

Dois anos da fila de espera por um rim

Desde jovem, o representante comercial Renato Possamai, hoje com 55 anos de idade, descobriu que sofria de diabetes, após ter um quadro de emagrecimento muito rápido. Ao longo dos anos fez uso de insulina, porém, em 2009, soube que, além do problema no pâncreas, estava com os rins afetados.

Durante três anos, precisou frequentar a hemodiálise do Hospital Tacchini, três vezes por semana, em sessões de quatro horas. “Eu trabalhava de dia e, durante a noite, ia fazer a hemodiálise. Passava muito mal, sofria de sudorese, tinha alteração na pressão, câimbras e muita insônia. Tomava cerca de 30 medicamentos diferentes. Era desgastante não só fisicamente, mas psicologicamente. Vivia em uma roleta-russa, pois via colegas de ‘cadeira’ passarem mal ou mesmo falecerem. No outro dia, podia ser eu”, relembra Possamai. Ele precisava seguir uma dieta especial e controlar a ingestão de líquidos, por isso, teve que praticamente abandonar um dos hábitos que mais gostava: tomar chimarrão.

Até os momentos de lazer com a família tiveram que sofrer alterações para que ele pudesse realizar o tratamento. “Quando íamos para a praia, eu tinha que frequentar os locais onde havia hospitais que ofereciam o serviço de hemodiálise. Seguia a mesma rotina, três vezes por semana, quatro horas na máquina, com duas agulhas enormes no corpo”, conta.

A entrada na relação para transplante ocorreu em 2010. Possamai precisaria, inicialmente, de um transplante duplo, de pâncreas e rim, mas, devido aos riscos e por ser mais seguro, o médico optou por realizar apenas o de rim. Três pessoas da família chegaram a fazer teste de compatibilidade e uma vizinha se ofereceu para doar o seu órgão. Uma irmã era compatível, mas precisaria perder peso para realizar a operação.

Ela iniciou o tratamento, mas o alento de Possamai chegou antes. “Era dia 27 de fevereiro de 2012, madrugada de segunda-feira, estávamos assistindo ao Oscar e por volta da 1h, o telefone tocou. Era do hospital, informando que havia um rim compatível comigo. Eu era o terceiro da fila. O primeiro pacientes estava muito distante e não iria chegar a tempo, e o segundo estava gripado. Tirei a sorte grande”, recorda.

Assim que soube da notícia, ele partiu com a esposa para o Hospital Dom Vicente Scherer – Santa Casa da Misericórdia, em Porto Alegre. “Cheguei lá por volta das 4h, fiz uma bateria de exames e, às 13h, passei pelo transplante”, lembra. Segundo a esposa, Susana Possamai, ela só conseguiu ver o marido por volta da 1h do dia seguinte. Ele permaneceu três dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e, após, 42 dias em recuperação no hospital.

Nos primeiros meses, voltava a cada 15 dias ao Dom Vicente Scherer e hoje, passados quase quatro anos do transplante, vai ao local a cada dois meses, para fazer todo o acompanhamento necessário. O corpo levou cerca de três meses para se adaptar com o novo órgão.

Atualmente, ele possui algumas restrições alimentares e precisa controlar a baixa imunidade. Dos 30 medicamentos que ingeria, ficaram apenas dois. Todo o tratamento foi realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e o remédio para evitar a rejeição é entregue pelo Estado.

Doador

A doação do rim veio de uma mulher, de 54 anos de idade, do Rio de Janeiro. Ela teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e a família optou por doar seus órgãos. “Gostaria muito de conhecer a família do meu doador e também agradecer imensamente o ato. Não somente por mim, mas porque soube que outras cinco ou seis pessoas também foram beneficiadas pelo gesto deles. Recebemos uma nova chance, e eu deixo o nosso muito obrigado por isso”, agradece. Possamai, exemplo vivo de uma segunda chance, reforça, por fim, a importância da compreensão de um simples gesto pode mudar a vida de muitas famílias.

Lista de espera para recepção de órgãos no RS*

Coração: 19
Córnea : 14
Fígado: 167
Pâncreas: 2
Pulmão: 87
Rim: 887
Rim e pâncreas: 17
Fígado e rim: 5

* Dados da secretaria estadual de Saúde do Rio Grande do Sul

Campanha

A CIHDOTT faz trabalhos constantes de conscientização sobre a importância de doação de órgãos. A equipe realiza palestras em empresas, escolas e unidades básicas de saúde, além de implantarem peças publicitárias em 20 ônibus do transporte público municipal. Atualmente, a comissão comercializam camisetas para auxiliar nos custos da fabricação de folders e dos painéis. Para adquirir as camisetas e auxiliar na campanha, basta ligar para o telefone (54) 3455 4229 ou 3455 4333, ramal 7107, das 8h às 12h. 

Fotos: Katiane Cardoso

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