Uma Bento Gonçalves que poucos conhecem

A cidade que se orgulha de ter um dos melhores índices de qualidade de vida do país esconde uma realidade pouco conhecida por seus moradores. O cenário de miséria no qual centenas de pessoas não vivem, mas sobrevivem, torna-se ainda mais assustador quando se conhece os bastidores de histórias de vida marcadas por dificuldades. O SERRANOSSA acompanhou a rotina de voluntários do Centro Espírita Nossa Casa, que deixaram as diferenças religiosas de lado e se uniram com pessoas de outras crenças com um objetivo único: levar dignidade àqueles que muitas vezes nem sabem o que é isso.

Nesta reportagem você conhecerá histórias de duas famílias que residem na rua Lajeadense, no bairro Municipal, local que concentra dezenas de famílias pobres. Em meio à insegurança, em função da frágil situação de casas de madeira construídas sobre pedras e em morros, elas sobrevivem graças a doações de alimentos, roupas, utensílios e móveis e do tempo dedicado por voluntários como os do Nossa Casa. Cercadas por uma falta de dignidade praticamente indescritível, elas têm a vida marcada por problemas que tornam ainda mais comovente o dia a dia.

Os nomes que constam nesta reportagem foram alterados para manter a privacidade das famílias entrevistadas.

Suicídio e acidente: “Tragédia pouca é bobagem”

O ditado popular pode ser facilmente aplicado à história de vida de Marina. Moradora da rua Lajeadense há cerca de nove meses, ela viu sua rotina virar de cabeça para baixo em março deste ano. Quando estava grávida de seis meses, o marido suicidou-se depois de ficar desempregado. Ela precisou arranjar forças para levar a gravidez adiante e ainda assim garantir suporte financeiro e emocional aos outros dois filhos: uma menina de 14 anos e um menino de 1 ano e 8 meses. No mesmo mês, o irmão, de 32 anos, sofreu um grave acidente de trânsito. Ele estava fazendo o conserto de um veículo no acostamento na RSC-453 (Rota do Sol), em Garibaldi, quando foi atingido por outro carro desgovernado. Desde então, ele já passou por cinco cirurgias para tentar reconstruir a estrutura óssea das duas pernas, que tiveram dez fraturas. Desempregado na época do acidente, ele vive com ajuda da irmã e passa o dia em uma cama em função dos pinos externos que impedem a locomoção. A família sobrevive de solidariedade. Marina deve voltar a trabalhar fazendo limpezas no próximo mês, depois de transcorrido o período da licença-maternidade. “Estou preocupada com a vaga na creche. O maior já está garantido, mas não estou conseguindo que o bebê seja incluído. Na prefeitura, dizem que tem vaga, mas que falta gente para trabalhar”, detalha. Ela mantém a família com os R$ 620 que recebe.  “Acho que foi Deus quem me fez ter forças. Pensei nos meus filhos, principalmente no menor, tão indefeso, e precisei me recompor e recomeçar a vida. Só peço que eu tenha dinheiro pelo menos para pagar o aluguel, para não ficar na rua. Mas a agonia é interminável”, conta a moradora.

Dedicação: “Precisei parar de trabalhar”

O julgamento precipitado da sociedade é um dos comportamentos que mais entristecem o metalúrgico Rui. Aos 40 anos, ele precisou abandonar o emprego para cuidar da esposa Maria, 39, e dos dois filhos do casal, de 20 e dez anos de idade. “As pessoas julgam sem saber o motivo, nos chamam de ‘vagabundos’. Mas tudo tem um porquê. Eu estaria trabalhando se tivesse como”, lamenta. 

O filho mais velho foi diagnosticado vagamente como portador de “evidente retardo mental com epilepsia de difícil controle”, quadro do qual sofre desde o nascimento. Até o início do ano, Rui trabalhava enquanto Maria cuidava dos meninos. Há nove meses, a saúde dela se agravou. Além do diabete, que obriga a utilização de insulina injetável, ela desenvolveu uma depressão profunda. Apesar do tratamento, Maria ainda não tem condições de ficar sozinha com os filhos, sobretudo porque o mais velho torna-se agressivo e necessita de cuidados especiais permanentes. A família sobrevive com R$ 620 oriundos de um benefício-saúde do INSS, valor com o qual quita contas básicas, como água e luz, e compra medicamentos não oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A maior parte da alimentação é fornecida através das doações do Nossa Casa.

Rui conta que a estrutura frágil da casa é uma preocupação constante e que eles conseguiram juntar nos últimos meses parte do material de construção para erguer uma estrutura mais segura. Entretanto, o projeto não pôde ser colocado em prática em função da indefinição quanto às obras de revitalização do bairro. “Ninguém dá certeza de nada e não sei quanto tempo aguentaremos. No mês passado alagou tudo”, conta.

A falta de um laudo oficial detalhado sobre as condições de saúde do filho mais velho impedem que ele seja medicado corretamente. Uma das voluntárias do Nossa Casa conseguiu, através da Associação Gota D´Água, informações sobre como fazer o encaminhamento dele para um neurologista, mesmo o jovem não tendo características de autismo. “Nosso estatuto exige que os beneficiados pela entidade tenham laudo de autismo, o que não é o caso. Orientá-lo mesmo assim foi a forma que encontramos de ajudar, porque muitas vezes falta informação a essas famílias e a burocracia atrapalha bastante. Mas é sempre bom ressaltar que de nada adianta tentarmos facilitar se eles não se ajudarem e lutarem pelo que precisam”, diz Elisabeth Giordani, pedagoga da entidade.

Toda forma de ajuda possível

O Centro Espírita Nossa Casa não se limita a distribuir alimentos, móveis e roupas. Todo o tipo de ajuda possível mobiliza voluntários, seja ela pessoalmente ou através de um encaminhamento. “Podemos ajudar de inúmeras formas, mas é preciso cautela em algumas situações, como em intervenções médicas. De nada adianta levarmos um médico até as famílias, se elas já são atendidas pela rede pública de saúde. Mais atrapalharia do que ajudaria. O que tem sido feito é o apoio indireto em áreas técnicas e de orientação, informações das quais muitas vezes as pessoas não dispõem e que são imprescindíveis para que tenham acesso a serviços básicos”, detalha Jaime Milan, um dos voluntários. A preocupação em não praticar  assistencialismo é constante. “Por isso é preciso sempre ter em mente que não basta ajudar aleatoriamente. É preciso ser caridoso, mas com controle, para que essa ajuda não se torne uma forma de assistencialismo que possa deixar a pessoa em uma situação de comodismo”, diz.

Durante as visitas feitas pela reportagem ao bairro Municipal, alguns exemplos disso puderam ser vistos na prática. Na moradia da cozinheira Edes Castilho, cuja história você conhecerá na próxima edição do SERRANOSSA, um engenheiro que frequenta o centro deu dicas para um pedreiro do bairro encarregado de erguer uma nova casa no mesmo terreno, ensinando-o sobre como fixar a base de modo a tornar a estrutura mais firme, apesar da instabilidade da área. 

Na casa de Rui e Maria, citados nesta reportagem, uma das voluntárias conseguiu junto à Associação Gota D´Água orientações sobre como a família deveria proceder para que o filho mais velho do casal fosse avaliado por um neurologista. O único atestado que a família havia conseguido até então é antigo e vago, impossibilitando um tratamento adequado e a conquista de benefícios previstos em lei.

A ajuda veio em forma de doação na casa de Marina. Os voluntários conseguiram uma cadeira de rodas que possibilitou que o irmão dela, cujas duas pernas estão fraturadas há sete meses, pudesse sair da cama durante algumas horas do dia.

Reportagem: Greice Scotton

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