Uma vida dedicada à proteção da história

Carina Furlanetto

Assunta De Paris ajudou, literalmente, a escrever a história de Bento Gonçalves. Autora dos livros “Bento ontem e hoje”, “A trajetória do comércio” e “Memórias de Bento Gonçalves”, a historiadora há 31 anos encarou como uma missão de vida a tarefa de separar os registros deixados no sótão da prefeitura – em meio a restos de argamassa e esqueletos de rato, como ela recorda – para construir o que hoje é o acervo do Arquivo Histórico Municipal. A paixão e o amor por compilar as lembranças de um povo e o carinho pelo município, que nesta semana completou 127 anos de emancipação política, ainda seguem vivos.

Em meio às prateleiras abarrotadas de documentos, com muito prazer e disposição ela recebe estudantes que estão em busca de um embasamento histórico para seus trabalhos de conclusão de curso ou para quem precisa de um registro sobre os antepassados para endossar o pedido de cidadania. Dona de uma memória invejável, ela consegue, em poucos minutos, traçar um panorama da evolução de Bento Gonçalves desde a chegada dos primeiros imigrantes, citando datas e fatos históricos. Quando precisa organizar suas ideias, ainda gosta de fazer à moda antiga, com papel e caneta – a escrita flui mais facilmente do que usando o teclado do computador, garante.

Assunta nasceu no interior de Bento Gonçalves e cursou magistério nos tempos em que o ofício era considerado uma missão. “Se fazia isso com muito carinho. Inclusive, o tema da nossa formatura era: luz para brilhar os caminhos dos nossos educandos”, lembra. Anos depois envolveu-se com a ala progressista da igreja e mudou-se para Goiás, onde trabalhou durante cinco anos. O contato com os migrantes daquela região – a maioria vindos de Minas Gerais – e suas histórias lhe despertou a curiosidade sobre a sua própria origem.

Ao retornar ao Rio Grande do Sul, integrou-se à Universidade de Caxias do Sul (UCS) para estudar os movimentos migratórios com mais profundidade. Em contato com pesquisadores, percebeu a escassez de material sobre o tema, restrito a algumas poucas biografias. Seu trabalho de pós-graduação foi sobre o povoamento do Brasil, abordando os diferentes ciclos. Descobriu assim, que o caminho para esta “terra de ninguém”, entre Laguna e os países do Prata, ocorreu de uma outra maneira e se debruçou sobre os estudos da imigração italiana.

Na época o município era administrado pelo ex-prefeito Ormuz de Freitas Rivaldo. “Como ele havia morado e estudado na França, tinha uma visão de futuro e em sua administração é que foi criado o Arquivo Histórico. Era 1986”, recorda. Na ocasião, a secretaria de Educação convocou os professores de História para elaborar uma apostila sobre as origens do município e Assunta foi indicada para dar forma ao novo órgão, que inicialmente funcionava no sótão da prefeitura – onde permaneceu até o ano 2000, quando foi transferido para o segundo andar de um prédio ao lado do Palácio Municipal. A missão de Assunta incluiu garimpar as preciosidades que estavam ali jogadas. Embora muitos documentos tenham se perdido ao longo dos anos, havia bastante material bem conservado por conta de arquivos de capa dura e pelas condições do espaço, sem mofo ou goteiras. O acervo era muito rico, mas precisava de alguém que soubesse dar o devido direcionamento. “Sem o timbre da visão histórica, ninguém valoriza um papel velho e amassado. Nem todos os pesquisadores sabem pesquisar. É necessário ver as entrelinhas dos registros. Alguém que tem visão de história vai percebendo e encontrando detalhes dentro dos parênteses”, explica.

À medida que encontrava documentos, e ia conhecendo a importância de cada um deles, Assunta procurou dar um direcionamento para que pudessem ser manuseados, separando em categorias para, posteriormente, catalogá-los. Ali estavam registros desde 1890, quando da emancipação do município, com detalhes como os moradores de cada linha e a cobrança de impostos. A cada novo achado, sua animação crescia. Em meio aos trabalhos, participou de um encontro nacional sobre gestão de documentos, promovido pelo Arquivo Nacional, em Brasília, formando um elo com profissionais de outras cidades e Estados. Retornou a Bento Gonçalves com a certeza de que poderia reconstruir a trajetória desde a chegada dos imigrantes. Poucos anos depois, teve seu empenho reconhecido, sendo convidada para palestrar no 1º Encontro de Arquivos Municipais, realizado em Rio Claro-SP, com apoio da USP.  “A história é a mensageira dos fatos, a testemunha dos tempos e aquela que vai nos dar a noção do suporte daquilo que somos”, afirma. 

Com base nos documentos a que teve acesso, ela pôde traçar os eventos cruciais para que Bento Gonçalves atingisse o patamar em que hoje se encontra. “Quando se estuda etapas da vida cultural de um povo, não se pode deixar nada de fora. Desde o vestuário, a gastronomia, a força de vontade e a própria religiosidade fazem com que se juntem as pecinhas e revele a massa que é o povo”, comenta. Para tanto, também se ligou a historiadores de renome e pesquisadores da área, como a Escola Superior de Teologia, de Porto Alegre, que fez estudos na região de colonização italiana com base nos dados disponibilizados pelas paróquias que registravam casamentos e mortes, trazendo também a cidade de origem de cada imigrante. “Precisa ter o tino de saber onde procurar e o que fazer depois disso. Mesmo nas obras que escrevemos, não é apenas uma pessoa que se ouve em um instante. É preciso analisar o fato histórico para que se possa encaixá-lo como uma pecinha para construir uma obra, com cuidado para não desequilibrar, e, principalmente, procurar a veracidade do fato que faz com que a gente tenha a forma concreta e verdadeira da história como é hoje”, acrescenta. 

Entre os acontecimentos que trouxeram o progresso, ela cita a abertura da primeira estrada – a Buarque de Macedo, com 90km, que ligava Bento a Montenegro – e a vinda da ferrovia, em 1919, permitindo que moradores da capital viessem à cidade para comprar os produtos das agroindústrias. O município voltou-se para uma de suas grandes vocações: a vitivinicultura. Foi graças a este segmento que a história se divide em antes e depois da primeira Fenavinho. A visita inédita de um presidente da República, que precisou passar por uma estrada de chão, fez com que quatro anos depois o município passasse a contar com um acesso asfaltado. A festa criou espaço também para outras feiras, em especial no ramo moveleiro, que evolui amplamente nos anos 70, abrindo uma janela para o Brasil e para o mundo. 

Em paralelo à atuação junto ao Arquivo Histórico, Assunta também realiza outros trabalhos como historiadora que têm reflexo direto no turismo, como é o caso do resgate feito no Parque Temático Epopeia Italiana. “Quero que cada pessoa, independente do seu nível cultural, não venha aqui só para passear, mas que leve uma forma de ver o que temos aqui não como resultado de uma civilização que ficou tranquila, esperando as coisas que os outros fizeram. Os nossos antepassados arregaçaram as mangas e disseram: queremos trabalhar e construir de uma forma honesta aquilo que é nosso, porque lá na Itália não tinham nada que era deles”, estima. Além disso, aos finais de semana também é guia turística credenciada pela Embratur e leva grupos para pontos de turismo religioso em outros Estados.


Esta é a 48ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.