Vida de contador de histórias

É com um intenso brilho no olhar e muita satisfação que Roger Castro se define como um contador de histórias. Acima de tudo, ele é um apaixonado pela literatura e pelo poder transformador que ela pode ter. É com esse mesmo ânimo que o artista quer contagiar outros profissionais para que também propaguem a mesma mensagem, despertando esse amor nas crianças. Mas como um menino do interior de Cruz Alta (RS), que contava causos para as vacas para passar o tempo, se tornou uma figura conhecida pelo seu dom de cativar a plateia? Foi por acaso – ao contrário da maioria dos que escolheram a profissão após se encantarem com esse universo ouvindo os pais e avós na infância. “Foram as histórias que me escolheram”, resume. 

Aos 14 anos Roger tomou gosto pelo teatro na escola. Seu contato com feiras do livro começou após uma oficina gratuita de contação de histórias oferecida pelo Sesc, que tinha como contrapartida o voluntariado nos eventos. Ainda adolescente, em algum momento foi chamado a subir ao palco para entreter crianças enquanto esperavam o início da atração seguinte. “Como a minha habilidade era cênica, o momento ganhava uma leitura mais cultural do que a brincadeira pela brincadeira. As pessoas me diziam: o que tu fazes é animação cultural”, lembra. Desde então, passou a percorrer outras cidades fazendo o mesmo trabalho, ainda de forma voluntária. Não demorou muito para surgirem os primeiros contratos com escolas e a atividade virou profissão. 

Bento Gonçalves

Com vindas esporádicas para a participação em eventos literários, Roger conheceu Bento Gonçalves. Em 2009, foi convidado para trabalhar na Piccola Città, um espaço para as crianças dentro da Fenavinho Brasil. Como a atividade duraria um mês, veio de mala e cuia, afinal, já havia se encantado com o município. “Vi uma equipe maravilhosa, envolvida, que era apaixonada. Eu via escritores voltando das escolas chorando emocionados porque tinham recebido homenagens maravilhosas. Eu disse: esse é o paraíso da literatura e aí criei vínculos com as pessoas. Quando eu vi que existiam pessoas que faziam coisas apaixonantes, me apaixonei também por elas”, relata. 

Roger atualmente reside em Caxias do Sul, mas ainda mantém vínculos com Bento. “É uma cidade gostosa. Turisticamente, então, é tudo o que se fala. As pessoas que me são preciosas, que me fizeram sair de Cruz Alta, estão aqui”, explica. Para ele, a Serra é uma propositora cultural muito maior que outras regiões do Estado, até mesmo a capital. “Eu me considero um artista da Serra”, garante. 

Dona Literata: primeira personagem criado em 2010. É uma professora aposentada, viúva quatro vezes em busca de seu quinto finado marido. Essa jovem senhora busca por meio da comédia motivar e integrar o público

 

Os primeiros personagens

O período em que viveu em Bento, além de trazer grandes amizades para a sua vida, também foi responsável por uma guinada na carreira de Roger. Foi em 2010, durante a 25ª Feira do Livro, que nasceu seu primeiro personagem: a Dona Literata. Até então, ele apenas tinha encenado papéis já determinados nos roteiros teatrais. A necessidade surgiu para dar um novo ânimo ao trabalho, já que pelas várias participações era uma “cara” conhecida das crianças. “Na animação cultural, diferente de uma peça de teatro, você interage com a pessoa, afaga, brinca. Na peça de teatro ainda existe uma distância e é um convívio de uma hora. O animador não, ele é muitas vezes a programação, o cicerone, o que costura as atrações, está ali o tempo inteiro”, avalia. 

A proposta inicial era interpretar a “Fe” – como era chamada a ilustração de uma figura feminina que estampava os materiais gráficos da feira –, mas Roger achou que seria estranho caracterizar-se como alguém tão jovem já sendo um homem mais velho. Surgiu então a ideia de fazer a avó dela, que também virou a avó dele próprio – explicação dada aos pequenos que questionavam a semelhança de ambos. A partir da Dona Literata é que, nos anos seguintes, surgiram outros personagens e que ainda fazem parte da vida de Roger – e são membros de sua família teatral: Tertulino Brandão, Sarah Lê, Dr. Paracetamol Veríssimo e Zé do Cordel

.Dr. Parecetamol Veríssimo: criado em 2013, o personagem convida o público para uma vida saudável por meio da leitura. Realiza consultas literárias e distribuiu receituários com diferentes doses de leitura de acordo com a necessidade de cada “paciente”.
 

Reconhecimento estadual

Atualmente Roger viaja por todo o Rio Grande do Sul – em junho já tinha eventos agendados para abril de 2018 –, seja trabalhando com crianças ou com adultos, através de palestras e oficinas em que se vale das suas criações. Além disso, também integra grupo Vivandeiros da Alegria, que reúne diferentes artistas, como animadores culturais, musicistas, mágicos e malabaristas. Apesar do trabalho artístico, ele faz questão de frisar que é, acima de tudo, um contador de histórias. 

Este talento foi potencializado para outras ações e o ajuda a conversar performaticamente sobre assuntos variados com trabalhadores de chão de fábrica, sobre empoderamento feminino, com mulheres, ou sobre motivação, com professores. “O meu prazer como contador vai potencializar o animador. Se eu não fosse um bom contador, eu dificilmente teria me tornado um animador. Lá em Cruz Alta, quando me chamaram para ir para o palco para entreter a plateia, eu fui como contador. Eu estava em uma barraca do Exército, em um calor terrível, na praça Érico Veríssimo, na frente da Catedral do Divino Espírito Santo, para contar histórias. E este contador foi chamado para o palco para animar. O contador se confundiu com o ator. Hoje o ator está a trabalho do contador”, descreve. 

Meio acadêmico

Apesar disso, formalmente sua ocupação é de professor. Roger é licenciado em Dança, com habilitação para lecionar Artes. Ao mesmo tempo em que está cursando Pedagogia, em setembro deve apresentar sua dissertação de Mestrado na área de Educação – ele pesquisa o papel do contador como um mediador de leitura – e, em seguida, pretende iniciar um Doutorado. Ele já ministra algumas aulas como professor convidado, mas a intenção é ingressar de fato na vida acadêmica – sem deixar de lado o contador – e ali fomentar nos futuros profissionais o gosto pelas histórias. “Se a pessoa não é apaixonada pela contação, ela te joga livros. Essa atividade tem que apaixonar. Muitas vezes nós não temos mais leitores pela falta de paixão do educador”, destaca. 

“O teatro que me puxou para a leitura e me levou à contação de histórias. Eu nadei por outros rios para me tornar um contador”, lembra. O escritor que primeiro lhe tocou o coração foi Mário Quintana. “É um poeta tão sensível que envolve crianças e adultos. Ele consegue ser sutil, sarcástico, apaixonante”, define.

Tertulino Brandão: criado em 2011, é um gaúcho bonachão, divertido, irreverente, contador de causos, lendas e tantas histórias. Vindo da Barra do Quarai não dispensa sua bombacha e chinela de couro, caminhar desengonçado e sorriso largo.
  

A escolha das histórias

Em alguns trabalhos, Roger consegue ter liberdade para selecionar as narrativas que irá apresentar; em outros, é contratado já com o tema pré-definido. “Quando eu escolho uma história para contar é porque ela me sensibilizou, mas sensibilizou o Roger menino. Quem escolhe as histórias não é o Roger de hoje, é o Roger que morou no interior de Cruz Alta, que ficava cuidando do gado no campo e que contava histórias para as vacas que eram suas amigas e chorava quando o padrasto vendia alguma delas”, recorda. 

Roger explica que durante muito tempo a contação de histórias era para ele apenas uma teatralização da obra, mas com o tempo tornou-se mais do que isso. Em grandes plateias, ele prefere valer-se do personagem, já que é mais uma atividade de lazer. “Sempre tive uma preocupação muito grande com a construção do personagem, que se basta por si, e o livro corre o risco de ficar à margem”, pontua. Em públicos menores, como em escolas, ele prefere ir descaracterizado, já que o objetivo é um momento prazeroso e que fomente o gosto e o contato com o livro. “Se a contação de histórias vai formar leitores no espaço escolar, é melhor que eu esteja desnudo, porque vou me valer da voz e da movimentação para dar vida aos personagens do livro”, acrescenta. 

Segundo ele, este momento deve ser uma possibilidade de fabulação, de recriar episódios já vividos, de oferecer uma escada para o impossível. “Não posso contar uma história só oferecendo algo que as crianças nunca viram, mas não quero que eles fiquem eternamente no concreto, quero que transcendam. Inicio uma história com elos do cotidiano e depois começo a sair dali. Por isso é tão importante que essas histórias me sejam importantes, que o contador leia e sinta paixão”, argumenta.
Na sua concepção, seu ofício é na verdade o de um “recontador”. “Toda história, mesmo decorada, vai ser uma ‘recontação’, porque eu trago os meus signos na movimentação, a minha entonação de voz. Mesmo que eu decore o texto, eu vou dar um valor que, quem sabe, não foi o pensado pelo autor. Às vezes, em um mesmo dia, uma mesma história contada dez vezes será dez novas histórias. Isso é fundamental no contador, saber perceber a sua plateia, ter uma leitura rápida de quem são essas pessoas”, ensina. 

Hoje, aos 37 anos, ele tem uma maior compreensão do público do que tinha aos 20, quando era mais elétrico. Sua preocupação passou a ser mais com a consistência do que com a energia. “O que eu acho bárbaro da animação cultural é a necessidade de um improviso a partir de um registro que eu tenho. Se eu vou passar uma semana animando uma Feira do Livro, eu vou me valer de tudo o que eu aprendi e a mesma atividade vai ser expressa de formatos diferentes”, observa. 

Roger coleciona passagem por feiras literárias em diversas regiões do Estado e com seu talento encanta crianças e adultos

Paixão: regra de ouro

A paixão é a regra de ouro da atividade, o resto são ferramentas. “Pensar que uma história é responsável por acarinhá-los é fantástico. Em alguns momentos eu me sinto quase como um pop star. Quando eu estou em um espaço com tantas pessoas e elas estão prestando atenção, isso é muito bom, é gratificante. Às vezes eu me concentro tanto e o público está tão maravilhoso que eu choro, de correr as lágrimas. Não existe uma boa contação de histórias só com o contador, a sinergia acontece e é fantástico”, observa.  

Ele garante que carinho compensa, mesmo nos dias em que está cansado por ter dirigido várias horas para chegar a um município distante. “Pensar que eu posso transitar por pequeníssimas cidades ou por grandes centros culturais do país contando histórias é pensar que eu fui presenteado com histórias”, finaliza. 

Fotos: Maíla Facchini / Quarto Estúdio e Carina Furlanetto (última imagem)

Esta é a 40ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito. 

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