Vida de quem está voltando a estudar

Decifrar as receitas que gosta de preparar para a família já não é mais um “bicho de sete cabeças” para Evanilde Nunes de Oliveira, de 53 anos. Se antes ela precisava esperar o marido retornar do trabalho ao final dia para pedir ajuda com o acesso à internet e a leitura dos ingredientes, hoje consegue sozinha selecionar os pratos que vai cozinhar – geralmente opções salgadas, para evitar a ingestão exagerada de doces. Também não foram raras as vezes em que precisou pedir ajuda dos funcionários do mercado para encontrar o produto que procurava. “Muitas vezes comprei produto trocado. Era complicado”, relata. A vida dela começou a mudar desde que retomou os estudos no Núcleo de Educação para Jovens e Adultos e Cultura Popular (Neeja), junto à Escola Estadual Anselmo Luigi Piccoli. “Minha vida mudou completamente e acredito que vai mudar cada vez mais. Eu sinto que eu estou enxergando bem, antes eu era quase cega”, exemplifica. 

Natural de Fontoura Xavier, Evanilde mora em Bento Gonçalves há 35 anos. A infância na colônia foi o principal motivo para não concluir sequer a primeira série. “Naquele tempo, os pais não eram obrigados a matricular os filhos na escola. Hoje a lei é diferente. Essa lei é muito boa. Tem que ser obrigado, porque muitos preferiam que eles não estudassem. Estudei muito pouco e com uma professora que nem professora era”, lembra. 
Ela saiu da escola sabendo apenas escrever o próprio nome, mas aprendeu a ler algumas palavras e a fazer contas já na idade adulta, com ajuda do marido e dos filhos. O desejo de retornar à sala de aula sempre existiu, mas Evanilde teve como prioridade educar os filhos. “Trabalhando, dei estudo para todo mundo. Agora é a minha vez”, conta. 

É só folhear o caderno para perceber como o traço das letras ganhou mais firmeza desde que iniciou os estudos há dois meses

Pequenos cálculos do dia a dia, necessários para fazer compras no mercado ou dividir e multiplicar ingredientes das receitas, ela conseguia fazer. “Descobri que a matemática para mim não é um mistério. É bem mais fácil do que o português”, garante. Embora não tenha dificuldades na fala, as regras gramaticais complicam a aprendizagem – seus principais desafios são relacionados à acentuação e na hora de diferenciar o uso de “c” ou “s“ e de “x” ou “ch”. Apesar disso, o avanço é notável. É só folhear o caderno para perceber como o traço das letras ganhou mais firmeza desde que ela iniciou os estudos, há dois meses. Comunicar-se com os amigos através de mensagens curtas no WhatsApp também ficou mais simples, embora a pressa às vezes faça com que as palavras sejam enviadas com algumas letras trocadas. “Ajuda bastante”, comenta.   

Mudança de vida

Hoje Evanilde mora com o marido, Alberi, e a neta, Rafaela, de 8 anos, que adotou há seis anos, quando a filha precisou mudar-se para outra cidade. Como não tinha conhecidos no local e teria dificuldades de encontrar com quem deixar a menina enquanto trabalhava, a avó se prontificou a cuidar da neta, mas quis formalizar a adoção para evitar complicações. Por conta disso, optou por parar de trabalhar como diarista para dedicar-se aos cuidados com a menina. Fez um curso de corte e costura básico, mas não pôde avançar para o próximo módulo devido às limitações na escrita. Assim que estiver dominando a leitura, pretende retomar a capacitação para poder trabalhar na área – por enquanto apenas realiza pequenos consertos nas roupas e costuras para a decoração da casa.
 
Rotina

Desde que retomou os estudos, a rotina em casa mudou. O jantar agora começa a ser preparado às 16h30. Depois, ela busca a neta na escola e se arruma para ir à aula. “A correria é grande, mas é bom”, destaca. A aula inicia às 18h30 e segue até 21h30. Os temas em maior volume costumam ser passados para o final de semana, já que muitos colegas trabalham. “Quando tem feriado, sinto falta do colégio”, conta. 

Para as atividades em sala de aula, os colegas com mais facilidade costumam ajudar ou outros. Por conta de maior familiaridade com os números, Evanilde geralmente é requisitada quando o assunto é matemática – apenas nos “números emprestados”, nas operações de multiplicação e divisão, ela ainda se perde um pouco. Ela é a mais velha da turma e, de acordo com uma avalição feita pela professora, está no que seria equivalente ao segundo ano do Ensino Fundamental. “Estou me dando muito bem. Estou adorando estudar. Nunca é tarde quando se tem vontade”, assegura. 

“Nunca é tarde quando se tem vontade”, assegura Evanilde

 

Esta é a 25ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito. 

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