Vida de quem ganhou uma segunda chance
“A única certeza que temos é a de que não vamos sair vivos dessa vida. Por isso hoje eu coloquei meu vestido preferido para ir trabalhar. Não dá para esperar até sábado para usar uma roupa legal. Se eu vejo uma coisa que gostaria de dar para alguém, não espero o aniversário, dou antes. A certeza da morte me faz ter certeza de que é preciso estar vivo todos os dias. Por isso, faça camarão na moranga no almoço de terça, não espere o domingo. Use saia, não espere bronzear as pernas. Comece a dieta hoje, não espere a segunda. Matricule-se em algum curso, quanto tempo faz que você não aprende uma coisa nova? Viaje agora (comece a gastar menos em bobagem). Depois da aposentadoria os joelhos doem e é difícil ficar 12 horas sentada em um avião e mais 12 horas caminhando a cada dia. Diga que ama quem você ama. Comece um relacionamento e se jogue de cabeça! Termine um relacionamento que te faz mais mal do que bem. Se o trabalho é ruim, troque! Não espere estar financeiramente planejado para ser feliz (esse dia pode não chegar nunca). Abra seu próprio negócio. Termine a faculdade. Tenha um hobby. Encontre os amigos. Jante fora. Faça mais do que te faz feliz a cada dia. Seja grato. Seja gentil. Viva o hoje sendo agradável aos que te cercam.” Quem lê as palavras de Francesca Bruttomesso De Paoli nas redes sociais não imagina o tamanho da vontade de viver incrustrada nessas frases. Aos 31 anos, ela comemora duplamente a vida.
Era uma quinta-feira de primavera, dia 29 de novembro de 2001, 23h20. Na ERS-122, em Bom Princípio, o motorista de um caminhão realiza uma manobra brusca e obriga outro a desviar. Em uma fração de segundos, ele atinge uma Kombi que retornava de Porto Alegre com adolescentes que haviam ido assistir a uma peça de teatro. Em uma fração de segundos, a vida acaba para duas delas e, na mesma fração de segundos, o que era para ser tragédia se transforma no momento emblemático de um renascer. Terça-feira, 29 de novembro de 2016: o dia em que Francesca comemora 15 anos da sua segunda chance de viver.
Francesca fazia parte de um grupo de teatro formado por 13 alunas do Instituto Estadual de Educação Professora Irmã Teofânia, de Garibaldi, chamado Triarteiras. No dia do acidente, cinco meninas haviam aceitado o convite para assistir a uma peça em Porto Alegre, com transporte cedido pela prefeitura. Na Kombi, além delas, estavam uma professora e o motorista. “Achamos o máximo, era a oportunidade perfeita para nós, que adorávamos teatro”, relembra. Como a mobilização aconteceu de forma repentina, nem todas conseguiram participar. “Na verdade ninguém sabia ao certo quem iria, foi tudo decidido em cima da hora”, conta Francesca. Mal sabiam elas que isso tornaria ainda mais dramática a situação em razão da necessidade de reconhecer as vítimas e avisar as famílias.
“O telefone tocou e eu estava dormindo. Olhei para o relógio e logo deduzi que havia algo errado. Era 0h30 e a Francesca ainda não havia chegado”, conta a mãe, Nádia. “Do outro lado da linha, uma enfermeira perguntava se eu era a mãe dela. Fiquei desesperada. Ela me dizia que estava tudo bem, mas foi difícil acreditar. Só respirei quando a moça disse que a própria Francesca havia passado o número. Já era dia 30 de novembro, dia do meu aniversário”, relembra. “Liguei para o celular dela, que havia ficado no local do acidente, e um policial atendeu. Ele informou que ela havia sido levada para o hospital. Quando pedi se alguém havia morrido, a resposta foi devastadora: ‘duas’”, emociona-se.
O “estar bem” descrito pela enfermeira significava apenas que a então adolescente havia sobrevivido à colisão. Nádia não fazia ideia de que a filha, levada às pressas para uma unidade de saúde em São Sebastião do Caí havia sofrido fraturas graves no lado esquerdo do corpo, no fêmur, no úmero, além de uma exposta no braço. Transferida para o Hospital Beneficente São Pedro, de Garibaldi, ela passou por cirurgia. Todos os outros ocupantes da Kombi também se machucaram bastante, mas se recuperaram. Duas das meninas, ambas com 16 anos, estavam sentadas no lado esquerdo do veículo, o mais atingido pelo impacto, e morreram no local.
11 meses de recuperação
A recuperação física e emocional de Francesca levou 11 meses, com sessões diárias de fisioterapia e semanais de psicoterapia. “Foram quatro meses em cadeira de rodas e o restante de muletas. Mas não deixei de viver. Estava no 3º ano do Ensino Médio e tinha certeza de que tudo ficaria bem. Minha mãe ficou um mês em casa comigo, depois precisou voltar a trabalhar. Na escola, a direção mudou a minha sala para o térreo. No turno inverso, os colegas faziam um revezamento para ficar comigo em casa e para me carregar – até hoje Francesca mora no 4º andar de um prédio próximo ao hospital. Minha mãe abriu uma conta na padaria que fica ao lado de casa e meus amigos passavam por lá, compravam um lanche e vinham passar a tarde aqui. Não deixei de fazer nada, nem mesmo de ir para o Joe [tradicional bar de Garibaldi]. O segredo era chegar bem cedo e sair quase de manhã, para evitar o tumulto e conseguir passar com a cadeira de rodas”, relembra Francesca. Hoje, às vésperas de a tragédia completar 15 anos, a única sequela física é uma leve diferença na medição dos ombros, de 1,5cm. “Não posso pular de paraquedas e fazer bunge jump em função do alto impacto e do risco de romper a placa no fêmur. Mas isso nunca foi um sonho mesmo”, conta. “Talvez, mesmo tendo ficado machucada, eu tenha sofrido menos do que aqueles que não vivenciaram o acidente. Nos meses seguintes tive todo suporte médico e emocional que precisei, recebi cuidados de todas as pessoas queridas da minha vida”, minimiza.
Como se não houvesse amanhã
O segredo para superar o trauma? Viver em homenagem às amigas que faleceram. “O acidente foi em uma quinta-feira, mas só me contaram que a Natália e a Janaína haviam morrido no domingo. No fundo, inconscientemente eu sabia, só não sabia quem. Quando finalmente eu soube, decidi que viveria por mim e por elas. A vida tem que seguir e temos que aproveitá-la”, enfatiza. Sorte ou coincidência, Francesca lembra pouca coisa da noite do acidente. “A professora contou que estávamos dormindo e que acordamos com a batida. Ela perguntou uma a uma se estávamos bem e disse que todas que haviam sobrevivido responderam. Não lembro de nada disso. Não sei se eu vi e minha mente apagou. Só lembro de ter acordado quando estavam colocando o colete cervical”, diz.
A tragédia fechou a escola no dia seguinte e obrigou a direção do hospital a impedir visitas tamanho era o “entra e sai” de adolescentes – “na sexta-feira e no sábado o colégio inteiro apareceu no hospital, foi uma loucura”, lembra Francesca. Passada a comoção, ficaram as lembranças e as homenagens. O grupo continuou por dois anos após o acidente, com esquetes adaptadas para uma personagem que usasse muletas para que Francesca pudesse continuar atuando. “Depois cada uma foi para a faculdade, mas não foi mais possível conciliar os horários”, diz. A faculdade, aliás, foi uma das consequências do acidente que Francesca quase não conseguiu superar. “A ideia era fazer relações internacionais em Santa Catarina, porque não existia o curso no Rio Grande do Sul, mas obviamente depois do acidente meus pais não deixaram. Mas a vida é engraçada… No ano seguinte a Unilassalle abriu o curso que eu queria”, relembra Francesca. Hoje formada, ela leciona Língua Inglesa para crianças de 2 a 6 anos em duas escolas infantis (Tia Dette, em Garibaldi, e Fantástico Mundo do Saber, em Bento); para crianças e adolescentes de 5 a 17 anos no Colégio Sagrado, em Garibaldi, e para adultos em sua própria escola de idiomas, a Step, em Barão. “Sim, eu trabalho como uma louca, em três turnos. E amo isso. Sei viver muito bem a vida. Aliás, sabia antes mesmo do acidente. Perdi minha avó quando ela tinha 60 anos e foi vítima de atropelamento. Ela tinha ido levar flores no cemitério e foi atingida a um metro do meio-fio. Desde então eu percebi que a vida era muito frágil para deixarmos algo para amanhã. Por isso, hoje sei que mereço usar tudo e viver tudo intensamente”, ensina Francesca.
Francesca guarda até hoje um álbum que conta em detalhes a trajetória do grupo Triarteiras,com fotos e textos. Elas continuaram se apresentando por dois anos após o acidente que vitimou duas integrantes, ao qual ela sobreviveu