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A injustiça extrema

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Embora a disciplina rígida imposta em decorrência do trabalho, com a “ocupação” do espaço domiciliar, o fato é que o período de clausura permitiu a intensificação de alguns prazeres, dentre os quais, as lives para acompanhar os movimentos do mercado e as reflexões sobre a pandemia, a escrita e os filmes. A quase que renúncia completa à TV aberta que implementei há um tempo permite uma seleção qualitativa de programas que arrebatem. Notícias, por escrito ou via rádio. 

A indústria americana de filmes domina o mundo. É fato. E tem, claro, boas películas. Mas há cinema, e dos bons, além de Hollywood. França, Espanha, Irã, Argentina e o Brasil, notadamente, produziram várias pérolas no decurso da história. A vitória de “Parasita”, do sul-coreano Bong Joon-ho, no último Oscar, quem sabe sirva para fortalecer as produções de fora da Terra do Tio Sam. Nas séries, a produção espanhola “La Casa de Papel” é um belo exemplo. “Questa mattina, mi son svegliata. Oh bella ciao, bella ciao, Questa mattina, mi son svegliata. E ho trovato l’invasor. Oh partigiano, portami via. Oh partigiano,portami via, Che mi sento di morir. E se muoio da partigiano. Oh bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao”. 

O francês “Retrato de uma Jovem em Chamas” e o espanhol “O Poço” são outros exemplos de boas produções recentes para além do cinema americano. 

Mas vamos ao filme tema. Cuida-se de um drama turco, vivenciado por pai e filha. O relato do diretor Mehmet Ada Öztekin leva à emoção extrema. Ele gravita em torno de Memo, um sujeito vitimado por uma patologia mental, que carrega consigo uma ternura muito peculiar e, também, um zelo irretocável com a filha, que atende por Ova. 

Memo (Aras BulutIynemli), Ova (Nisa Sofiya Aksongur) e a avó, Fatma (Celile Toyon Uysal), moram numa comunidade pobre, na Anatólia. 

O filme é ambientado na Turquia dos anos 80, conduzida por um regime militar, que adotava e aplicava a pena de morte em total desrespeito ao devido processo legal e ao primado do julgamento imparcial. A vontade dos mandatários era o norte do poder, num personalismo que violava todos os preceitos do Estado Democrático de Direito. 

Essa Turquia tirânica e atroz, aliás, foi retratada com crueza num marco da história do cinema, “O Expresso da Meia-Noite”. O sistema turco desse período é o retrato intenso do repugnante vilipêndio aos direitos dos cidadãos, empilhando condenações arbitrárias, fruto do personalismo daqueles que ocupavam as altas patentes militares. 

Claro, hoje, a Turquia, importante depositária do patrimônio cultural clássico e bizantino, já não retrata mais o Estado totalitário que imperava outrora. 

O fato que gera a prisão de Memo remonta a um incidente ocorrido com a filha de um coronel. Memo, que estava com ela no momento da morte, acaba levado ao cárcere e, mesmo após o testemunho de um soldado desertor, que presenciou a queda da menina do penhasco junto ao mar e a total inação do pai de Ova, acaba condenado à forca. 

Paremos por cá, pois o final do filme é a representação de um dos prodígios de seu extraordinário roteirista e, espero, todos vejam. Mas chamo atenção para o fato de que não há, em todo o filme, referência a nenhum advogado. Sim, eles não existem (!?). E um dos papéis primordiais do advogado, muitas vezes olvidado ou diminuído, é o de identificar as injustiças e tentar, a partir das ferramentas que o sistema judicial democrático oferece, repará-las.

É evidente que num Estado despótico, como o turco dos anos 80, o grau de injustiças é extremo, rompendo todos os parâmetros da decência humana, contudo, mesmo em Estados que têm um Judiciário instituído por uma Constituição Democrática, como no Brasil, o advogado é figura essencial à justiça. 

E, como bradou o emblemático personagem de Cervantes, Dom Quixote: “A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens receberam dos céus. Com ela não podem igualar-se os tesouros que a terra encerra nem que o mar cobre; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida…” 

Assim, se as torturas atrozes e a injusta condenação retratadas no Milagre da Cela 7 são o que mais revoltam, é certo que a possibilidade de que elas ocorressem com a presença de um advogado, responsável pelo exercício da dialética processual, seriam menores. 

Mas o ponto nevrálgico da questão está antes disso: na ausência de um processo democrático, onde as partes exerçam seu ofício com paridade de armas e o acusado possa gozar de presunção de inocência. As decisões arbitrárias, portanto, fruto da convicção pessoal ou de pré-impressões do julgador são sempre nefastas. 

O Milagre da Cela 7, assim, não nos deixa esquecer de que um sistema de exceção, que projeta lugares de poder fora da democracia, é sempre pernicioso e tende, além de vitimar inocentes, a retirar o esteio de pluralidade, essencial à sociedade, que permite a consideração de diferentes pontos de vista antes de que o Estado, representado pelo Juiz, decida. E, como disse Machado de Assis, “Negar é ainda afirmar”.
 

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